4 de jul. de 2008

CRONICAS 10

Liberdade

Meu pai sempre teve um senso de segurança meio estranho. Saímos de um prédio com vigia para uma casinha numa vila sinistra. Meu pai disse que morar em casa era mais seguro. A primeira coisa que ele fez foi arrumar um Boxer. Acho que a tal segurança que ele tanto falava, não era tão segura assim. Eu ainda era um cotoco de gente de apenas 2 anos, então meu irmão que escolheu o nome. Dog maravilha. Meu irmão era vidrado numa apresentadora de tv.
Quatro anos se passaram. Um mês após eu completar seis anos, meu pai me levou pra casa de uma tia que eu nem sabia que existia.
- Ela tem uma surpresa pra você. – disse o coroa.
- O que é? – perguntei.
- Se eu disser, não será mais surpresa. Tabacudo. – ele respondeu.
Chegamos na tal casa. Uma hora de viagem. Era muito longe lá de casa. Claro. Se fosse perto ela possivelmente não seria uma tia desconhecida. Tocamos a campainha. Uma senhora baixinha e da testa grande abriu a porta:
- MEU DEUS! – exclamou a louca.
- Como vai, Nazaré? – perguntou meu pai.
- Estou ótima, querido. Entrem, entrem.
Entramos.
- Agora deixa eu dar uma apertadinha nas bochechas dessa formosura aqui. – disse ela, enquanto tentava rasgar minha cara.
- Você que é minha tia?
- Mas é claro. Tia Nazaré. – respondeu a doida.
Quando eu dou por mim, sinto uma beliscada na minha pitoca. E então, minha tia exclama:
- PITADA! Atchim.
- Que mulher medíocre. – eu pensei.
Depois dessa sem-vergonhice, ela nos levou para ver a minha surpresa. Andamos por um corredor, até chegar a uma porta de ferro. Paramos na frente da porta. Depois de tanto ver os programas de Sérgio Malandro, concluí rapidamente que atrás daquela porta estava minha surpresa.
- Fecha os olhos, queridinho. – pediu Nazaré.
- Eu? – perguntei inocentemente.
- Fecha logo, porra. – meu pai disse.
Fechei meus olhos. De repente, ouço um terrível barulho parecido com um grito de uma pessoa agonizante. Era a porta de ferro abrindo. Provavelmente. Uma mão morna toca meu ombro.
- Por aqui, querido.
Era Nazaré.
De repente, sinto algo como um bloco de concreto me arremessar para frente.
- Anda!
Era meu pai.
Passei pela porta. Senti uma brisa maravilhosa passar pelos meus cabelos. Provavelmente estávamos numa espécie de terraço. Logo percebo um cheiro estranho. Era ruim, de princípio. Depois de alguns segundos, comecei a achar o cheiro bastante agradável.
- AHH! – eu gritei – O que é isso nos meus pés?
Algo molhado e frio tocou meu pé direito. Era mole. Logo depois, sinto algo peludo roçar no meu pé esquerdo.
- Posso abrir os olhos? – perguntei.
- Abre logo, maricas. – meu pai respondeu.
Abri.
- NOSSA SENHORA! – exclamei.
Eu me encontrava em um grande terraço contornado por flores. E no terraço, havia uns dez filhotes de Boxer. Meu deus. Eram todos lindos.
- Essa era a surpresa. Qual o que você quer? – perguntou minha tia.
- Posso escolher qualquer um? – perguntei.
- Claro. – ela respondeu.
Decisão difícil essa que eu estava prestes a tomar. Eram todos lindos. Havia seis filhotes pretos, três marrons e um mesclado. O mesclado. É claro. Um excluído feito eu.Um fará companhia para o outro. Vai ser ótimo.
- Eu quero aquele ali. – disse para minha tia, enquanto apontava para o mesclado.
- É uma cadela. – ela disse. – A única da ninhada.
- Uia! – exclamei.
Peguei a cachorrinha no colo. Estava animadíssimo. Bastava agora eu escolher um nome. Não. Eu já sabia que nome eu ia dar.
- Escolhe um nome pra ela. – disse meu pai.
- Ela não vai ter nome. Ela é uma solitária, igual a mim. Solitários não precisam de um nome. Solitários são apenas chamados, pelos outros, por xingamentos. Ela não precisa de um nome. A chamarei apenas de cachorra.
- Que seja. Ela não é minha mesmo. – disse meu pai.
Depois de agradecer bastante a minha tia e depois de mais uma pitada, nós fomos pra casa. Mais uma hora de viagem. Não importa. O tempo não importa mais. Agora eu tinha uma companhia. Agora eu tinha alguém pra brincar comigo. Nada mais importava.
Ao chegar em casa, fui logo mostrar a novidade pro resto da família. Foi uma tarde maravilhosa.
Passou seis meses. Seis meses ótimos. Até que uma tragédia aconteceu. Meu pai tomou a cachorra de mim. Disse que ele aceitou ela lá em casa para que virasse um cão de guarda junto com o Dog Maravilha. Merda de pai. Merda de paranóia com segurança. Só teve uma coisa boa nessa história. A cachorra se afeiçoou ao Dog Maravilha. Já comecei a pensar em filhotes. Meu entusiasmo logo passou. É que dois meses depois, um veterinário foi examinar a cachorra, e disse que ela seria estéril para sempre.
Os anos foram passando. E com os anos, veio o crescimento. A cachorra ficou grande. Maior do que eu. Vivia latindo e se amostrando pro Dog Maravilha. Dog Maravilha estava velho. Não tinha mais nada de maravilhoso. Ele estava com câncer. Seu olho direito estava totalmente inchado. Suas pernas estavam fracas. Ele ia morrer. Que pena. Além de ter sido um bom cão, a cachorra o adorava. Acho que ela não agüentaria vê-lo morrer.
Mais um ano se passou. Tinha acabado de chegar da escola, quando fui olhar os cachorros.
- Mais que merda! – eu pensei.
Dog Maravilha estava nas últimas. Estava deitado no oitão. Babando. Não conseguia mais se levantar. A cachorra estava dentro da casinha, dormindo. E eu estava na grade que dá para o oitão. Em pé. Não sei a quantas horas eu estava lá. Perdi totalmente a noção do tempo. Fiquei apenas em pé, observando o Dog Maravilha. Queria fazer algo para diminuir seu sofrimento. Não podia. Eu era covarde demais. Foi aí que, de repente, Dog Maravilha enrijece as patas, urina forte e morre. Eu congelei. Meu coração tinha se reduzido ao tamanho de uma bolinha de gude. Então, a cachorra sai da casinha. Lentamente se aproxima do Dog Maravilha. Cheira seu focinho, derrama uma lágrima e volta para a casinha. A bolinha de gude, que estava no lugar de meu coração, racha.
Dois meses se passaram. Dois meses silenciosos. Não se ouviam mais latidos. A cachorra não mais saía da casinha. Ficava apenas deitada. Alimentava-se mal. Estava visivelmente triste. Na verdade, ela parecia estar esperando algo. Esperando algo para que pudesse ir embora. Todos os dias eu a observava por horas. Tentava descobrir o que se passava em sua cabeça. Queria saber o que tanto ela esperava. Foi então que a situação piorou.
Uma semana se passou sem que ela comesse nada. Então, certa tarde, eu fui vê-la. O céu estava negro. Chuviscava. Uma forte chuva se aproximava. Não importava o tempo. Eu só queria ficar lá com ela. A cachorra, que me foi dada por uma tia cujo nome eu não mais lembrava, estava morrendo. Quando eu a ganhei, decidi que ela não teria um nome por ser solitária. Mas me enganei. Ela não era solitária. Não nasceu para ser uma solitária. E estava preferindo a morte a viver só. Um espasmo veio. Ela sobreviveu. Veio outro e outro e mais outro. E ela sobrevivia. Cada vez mais fraca. Cada segundo que se passava, mais perto da morte ela estava. Por que ela resistia? O que ela queria além da morte? Não agüentava mais ver aquilo. Rios de lágrimas escorriam dos meus olhos. Resolvi ir embora, mas algo se passou pela minha cabeça. Pus a mão em sua cabeça, e disse:
- Liberdade?
Ela me olha.
- Liberdade. É isso. Boa noite, Liberdade.
Liberdade balança seu rabo e dorme. A bola de gude se parte.